"Somos uma maneira do Cosmos conhecer a si mesmo" (Carl Sagan)

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domingo, 15 de outubro de 2017

Educação - Parte 2 (O Mestre e o Discípulo)


Nesse nosso dia-a-dia corrido, há a dificuldade de se manter um blog funcionando semanalmente. Comecei postando 4 semanas seguidas em 2016 e depois sumi para retornar apenas esta semana. Curiosamente a última postagem de 2016 foi a postagem sobre Educação no Dia dos Mestres do ano passado. E aqui estou eu mais uma vez para falar sobre Educação no Dia dos Mestres desse ano. Ano passado comentei sobre "o aluno de hoje", mostrando que, em minha concepção, e com base em dados estatísticos (cuja fonte não consegui encontrar de novo), o aluno de hoje é o mesmo de sempre. A diferença é que ele está dentro das salas de aula e antes não estava. Hoje nós temos de lidar com essas dificuldades. Como também mencionei na postagem anterior, não há um dia em que eu não pense em alternativas para o problema atual da educação. E por "problema", vamos considerar o fato de haver um grande número de alunos que não acompanha mais o que lhes é ensinado. Há um grande desinteresse e, por consequência, indisciplina nas salas de aula. Existem vários fatores que atrapalham o aprendizado desses alunos, mas não conseguirei abordar todos nessa segunda postagem. Queria focar naquele que é considerado o problema primordial na educação dos dias de hoje: a indisciplina. 

Antes disso, entretanto, vamos entender o que seria a almejada disciplina. Etimologicamente falando, "disciplina" vem da raiz latina "discípulo" (Estrela, 1992, p.17). Outra possibilidade de interpretação (Garcia, 2006, p.70) é a de que sua origem está na palavra discípulus (composta do prefixo dis, e do verbo capere), o que podemos interpretar como "um indivíduo que se apropria de algo que lhe está sendo mostrado ou indicado". Daí o sentido de “discípulo” como "aquele que aprende". Ainda uma outra possibilidade é da palavra ser derivada do verbo latino disco, o qual pode ser traduzido como "aprender" ou "tornar-se familiarizado". Desse termo que se forma a palavra "didática", por exemplo, e é dele que vem o sentindo da palavra discípulo como "seguir" ou "acompanhar". (Essas informações foram extraídas do artigo "Reflexões Sobre Indisciplina: Construindo um Conceito Pedagógico", publicada pela PUCPR. Se tiver interesse em ler o artigo na íntegra, clique aqui). Enfim... não é meu objetivo ficar trabalhando o conceito e uma análise muito profunda do que vem a ser disciplina. A questão é que, independente da origem da palavra, todas elas levam à relação entre aluno e mestre, à formação de um discípulo, de um seguidor. Nesse sentido, não há como dissociar a aprendizagem da disciplina. A disciplina é um fator primordial no processo de ensino-aprendizagem. Sem ela, não há como o indivíduo aprender.

Agora que sabemos que disciplina é fundamental e a falta dela - a indisciplina - o maior obstáculo ao trabalho de um professor, vamos entender o que leva a essa indisciplina. Segundo o Zen-Budismo, a relação mestre-discípulo é uma escolha. Um artigo publicado no site Sobre Budismo (que pode ser lido na íntegra aqui), diz que "três características definem o discípulo: silente, obediente e não resistente". Curiosamente são as 3 características que nos faltam hoje em muitos alunos. Eles são falantes e barulhentos na maior parte do tempo, são desobedientes (não querem seguir as regras) e são resistentes àquilo que os mestres querem ensinar. Mas por que isso ocorre? Ainda embasado no artigo acima, o discípulo precisa se sentir conectado com o mestre. É preciso, antes de tudo, se sentir bem na presença daquele mestre, perceber que o mestre fala diretamente com seu coração. E o problema é esse: não há a tal conexão, não há um bem-estar, o mestre não fala diretamente com o coração do aluno. E por que tal conexão não existe? Há inúmeros fatores que poderiam justificar e eu teria de fazer uma nova postagem só pra explicar as suas origens. Mas em síntese, podemos citar a falta de infraestrutura social e familiar da qual vêm a grande maioria dos alunos. E não me refiro somente à criança carente que mora numa comunidade e assiste tiroteios diários na porta de sua casa. Me refiro também à criança de classe média cujos pais trabalham tanto que não tem tempo a dedicar aos seus próprios filhos, suprindo sua ausência com bens materiais e não afetivos. Essas crianças chegam à escola já com inúmeros problemas pessoais não resolvidos. Muitas das vezes a escola se torna um local de escapismo e de interação social, o momento no qual finalmente conseguem se ver longe de todos os problemas que as cercam. E se nesse momento, o professor não conseguir de alguma forma atrair a sua atenção... já era! É vencido por uma série de outros fatores concorrentes muito mais atrativos, como a conversa sobre o fim de semana, o smartphone, uma revista em quadrinhos, etc. Parece uma tarefa impossível vencer esse tipo de concorrência, não é mesmo? 

O mundo atual está cheio de atrações muito mais interessantes do que uma sala de aula, isso é um fato. Se você quer entender o aluno, basta colocar-se na posição dele. Imagine que você tem de assistir a uma palestra chata do seu ambiente de trabalho. Imagine que seu smartphone está vibrando com mensagens divertidíssimas de algum grupo de WhatsApp que você participa. E imagine que duas pessoas ao seu lado estão discutindo os lances do último jogo do seu time do coração ou cenas de um filme que você viu no cinema e adorou. Consegue entender o aluno? A maioria não resiste. Poucos é que teriam a disciplina necessária para se manterem concentrados e focados no palestrante. E isso, somente se estiverem conectados com o assunto, entendendo a relevância do assunto para o seu trabalho. Se você em algum momento perceber que todo o blábláblá que está sendo dito não fará diferença alguma no seu cotidiano, você facilmente cederá à dispersão. É o caso dos personagens Daniel San e Senhor Miyagi, do filme Karatê Kid de 1984 (imagem de capa deste artigo). Senhor Miyagi tenta ensinar Karatê a Daniel através de técnicas sutis, que não parecem em nada com Karatê, como lixar o seu assoalho, encerar seus carros e pintar suas cercas. Por mais ávido que Daniel estivesse a aprender Karatê, a falta de entendimento sobre o que estava sendo passado e seu objetivo o levou à uma explosão contra seu Mestre, pois achou que estava sendo usado como mão-de-obra e não um discípulo. A cena em que a lição é finalmente entendida pode ser vista aqui. Além disso, se você não se conectar ao que está sendo dito, também cederá à dispersão. Imagine-se numa palestra cujas palavras proferidas pelo palestrante você mal consegue compreender, ou porque ele tem uma péssima dicção ou porque está num idioma diferente. Consegue manter sua atenção focada nesse caso? Então imagine um aluno que apresenta uma enorme defasagem sobre o que está sendo dito em sua frente. Por mais esforçado que seja, se ele não consegue entender o que está sendo dito, se a conexão não surge, a dispersão vence. Eu mesmo já passei por esse tipo de situação algumas vezes. Sou professor de Biologia, mas dou aulas interdisciplinares de vez em quando. Certa vez fui dar uma aula interdisciplinar entre Biologia e Matemática. Quando meu colega de trabalho começou a trabalhar os conceitos matemáticos envolvidos numa questão de vestibular, me senti como esse aluno. Eu tentava me conectar à aula, mas eram conceitos que há muitos anos não via. Uma enorme dificuldade de compreensão se apossou de mim até que em determinado momento desisti e fiquei esperando ele acabar de falar para poder voltar à minha Biologia. Imagine agora um aluno que passa por isso diariamente? Percebem o nível do problema? Se você não consegue entender algo, você perde o interesse. Se você perde o interesse, a dispersão ocorre. Se a dispersão ocorre, há uma boa probabilidade da indisciplina surgir. Sacou?

E como trazemos essa disciplina de volta então? Infelizmente não tenho essa resposta. Seria muita pretensão da minha parte achar que posso montar um guia nesse sentido. Mais uma vez é preciso deixar claro que meu objetivo com esse artigo é apenas expor algumas de minhas ideias na esperança de que elas sirvam de ajuda a outros colegas de profissão que também se questionam sobre as mesmas condições de trabalho. Tudo o que posso fazer nesse momento é enumerar algumas situações que fui notando nesses 15 anos de magistério, além de informações provenientes de leitura e palestras assistidas. Nesse sentido, percebo que a maioria dos profissionais da educação acaba apelando para o "controle aversivo", ou seja, acabam caindo no autoritarismo. E é preciso ter em mente que ser uma autoridade não significa ser autoritário. "Autoridade (do termo latino auctoritate) é um sinônimo de poder. É a base de qualquer tipo de organização hieraquizada, sobretudo no sistema político. É uma espécie de poder continuado no tempo, estabilizado, podendo ser caracterizado como institucionalizado ou não, em que os subordinados prestam obediência ao indivíduo ou à instituição detentores da autoridade" (Wikipédia). Ser uma autoridade, portanto, é ser obedecido e respeitado por aqueles que estão numa escala hierárquica abaixo da sua. Acho que quanto a isso, ninguém discorda. A discordância surge no momento em que um indivíduo acha que respeitar é sinônimo de temer.  Muitos profissionais da educação acabam apelando para o medo, pois acreditam que o aluno que tem medo dele é um aluno que o respeita. Se há uma coisa que aprendi nesses 15 anos de trabalho e estudo é que isso é um grande equívoco. Para compreender o que quero dizer, imaginemos um exemplo cotidiano. Imaginemos que há um cruzamento entre duas ruas onde ocorrem muitos acidentes. Para diminuir a colisão entre os automóveis, alguém coloca uma placa escrita "pare". Pode ser que alguns a obedeçam, mas muitos continuarão avançando e colidindo. Uma autoridade coloca então um sinal de trânsito. Pode ser que a maioria pare no sinal vermelho, mas alguns ainda avançarão e causarão acidentes. A prefeitura manda instalar radares de avanço e maioria para, mas alguns ainda vão usar estratégias para camuflar as placas de seus automóveis, dobrar as placas das motocicletas, etc., de forma a não serem identificados. Percebe-se que a imposição de uma regra, pura e simplesmente, não soluciona o problema. É preciso nesse caso algum tipo de transformação na mente do indivíduo para que ele compreenda a importância de se respeitar aquela parada. Muitas vezes como a educação não funciona, apelamos ao autoritarismo. A prefeitura indica então um guarda de trânsito ao local. A coisa parece funcionar. Enquanto aquele guarda está ali, ninguém avança, mas é só o guarda sair do local que as pessoas voltam a infringir as regras. Isso significa que as pessoas não fazem isso em respeito à regra, mas apenas por medo, ou seja, não houve uma real transformação do indivíduo. O indivíduo não mudou sua postura, não aprendeu de fato. Se tivesse de fato aprendido, não haveria nem mesmo a necessidade de algum tipo de sinalização no local. Trazendo agora a situação para uma sala de aula, um professor autoritário consegue fazer seus alunos ficarem em silêncio enquanto ele discursa, mas não significa que eles estejam de fato aprendendo. Na maioria das vezes é justamente o contrário: estão apenas esperando o professor acabar de falar (seja lá o que ele estiver falando) para então voltar às atividades que julgam pertinentes. Faz sentido isso?

Outra questão que vejo é o fato de alguns professores confundirem rigidez com grosseria. Um professor rígido faz com que as normas sejam seguidas à risca. Ele pode chamar a atenção do seu aluno e fazer as regras serem cumpridas com um sorriso no rosto. Ele pode fazer a justiça prevalecer, mas com grande carinho pelo seu educando. Mais uma vez, a confusão feita entre respeito e medo é o que leva alguns profissionais a apelarem pra grosseria com seus alunos. E a grosseria só tem o efeito oposto: distancia o aluno, rompe-se a tal conexão entre mestre e discípulo. Por isso professores que impõem medo em sala de aula são os mais criticados e "zoados" por seus alunos na sua ausência. Já um professor que conquista seus alunos com carinho e atenção, que sabe impor as regras com justiça e educação, costuma ser defendido mesmo fora da sala de aula. Ele é de fato uma autoridade respeitada, não um autoritário temido. Entendem? Concordam?

Uma última questão que gostaria de abordar são as defasagens culturais e conceituais que os alunos carregam. tais defasagens fazem com que haja uma extrema dificuldade na manutenção da concentração desses alunos, levando-os à famigerada indisciplina. Nesse caso, como proceder? O ideal seria identificar todas essas defasagens conceituais, registrando-as e solucionando-as uma por uma. Se isso já seria muito difícil a um profissional da educação com 1 aluno, imagine com 40 deles dentro de uma sala de aula e em diferentes níveis de defasagem? Talvez uma mudança no tipo de cobrança funcionaria (e pra falar de método avaliativo, levaria uma outra enorme postagem). Acho que uma forma de simplificar seria dizer que se "o objetivo da educação é que o aluno aprenda", talvez uma flexibilização na cobrança seja necessário. Aprender pode ser visto como "subir um degrau" e não necessariamente como "absorver tudo". Se o aluno subiu de nível, ele aprendeu. Talvez não tudo o que era desejado, mas teve algum nível de avanço. Uma avaliação justa deveria valorizar esse tipo de crescimento, medindo as competências adquiridas pelo educando, e não as suas incompetências, como o sistema educacional acaba fazendo. Se eu julgo um indivíduo por tudo o que ele não é capaz de fazer, eu o desestimulo. E com o desestímulo, muitos desiste. Surge então novamente a indisciplina. Em alguns casos, dadas as dificuldades encontradas fora da sala de aula, um aluno talvez precise de algum tipo de assistência para conseguir alcançar seus objetivos. Mas muitos confundem atitudes assistencialistas com paternalistas, no sentido de "ser um pai que mima seu filho, livrando-o de todos os obstáculos à sua frente". Esse segundo caso é totalmente oposto ao propósito da educação. A educação visa tornar o indivíduo autônomo e não dependente. Portanto, o assistencialismo nesse caso é a ideia de dar a "assistência" necessária a este indivíduo necessitado, de forma que ele possa alcançar os objetivos educacionais. Nesse sentido, o assistencialismo é uma ferramenta útil no processo de ensino-aprendizagem de muitos educandos. Agora... se os programas que o estado oferece são na prática assistencialistas ou paternalistas, deixo a cada um de vocês julgar. A discussão sobre esses projetos passa pelos matizes ideológicos que são causa de discórdia e motivo da polarização nacional atual. Deixemos essa questão para discussões futuras.

Concluindo e sintetizando a questão: um discípulo só segue o mestre se quiser. E esse discípulo só vai querer seguir um mestre no qual ele acredita e tem afinidade. Muitas vezes o discípulo até quer seguir determinado mestre, mas tem dificuldade e precisa de algum tipo de ajuda ou assistência. E se nenhuma dessas premissas for atendida, o discípulo deixa de segui-lo e e surge então o ato da indisciplina. Para solucionar essa indisciplina, precisamos solucionar essas questões. Não é algo fácil, não depende de um só indivíduo. A solução exige um somatório de fatores, desde mudanças no âmbito individual até uma reforma no sistema educacional. Mas podemos contribuir para esse todo em nosso dia-a-dia no momento em que tratamos esse aluno com respeito, como um ser humano, agindo com empatia o suficiente para entender as suas dificuldades, entender a sua cultura, encontrando soluções não agressivas ou autoritárias, desconstruindo nossos conceitos e pré-conceitos, e trabalhando os nossos ideais. Ao menos é o que penso. E você? O que acha?

“Não existe mau aluno, só mau professor” (Senhor Miyagi)

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