"Somos uma maneira do Cosmos conhecer a si mesmo" (Carl Sagan)

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domingo, 14 de janeiro de 2018

Epigenética - Acima da Genética


Uma modificação fenotípica, ou seja, uma modificação que ocorreu em seu corpo ao longo de sua vida pode ser passada geneticamente aos seus descendentes? Estaria Darwin errado e Lamarck certo? Conheça a epigenética! Epigenética é o estudo da alteração na função dos genes que não envolvem alterações na sequência dos nucleotídeos. Tratam-se de alterações nos cromossomos que afetam a atividade e a expressão dos genes. E essas alterações são hereditárias! Como assim? Seria um "Neolamarckismo" surgindo? Vamos entender...

Em primeiro lugar, é importante que você esteja familiarizado com os conceitos de genética molecular. Essa postagem, no caso, é a terceira de uma série. Se você perdeu as duas anteriores, ou se você quer relembrar para entender melhor a questão, acesse nos links a seguir a Parte 1 e a Parte 2. Na primeira parte, vimos que uma alteração na sequência dos nucleotídeos do DNA, as chamadas mutações, podem afetar a transcrição das proteínas e, consequentemente, a expressão do fenótipo do indivíduo (características observáveis do indivíduo). Entretanto, no caso do fator epigenético, como dito na introdução, não afeta essa sequência, não gera uma mutação. Vimos também que existem fatores que bloqueiam a transcrição de determinados trechos do DNA, alterando a expressão gênica. Entretanto, no caso do fator epigenético, tais alterações são hereditárias, como dito na introdução. E onde ocorrem essas alterações então? Como visto na Parte 2, as proteínas histonas são responsáveis por "trancar" e "destrancar" certas regiões do DNA, tornando as informações acessíveis ou não. Boa parte das alterações epigenéticas acontecem nesse nível. 

Voltando às nossas analogias, imaginando que o DNA de um indivíduo seja seu manual de instruções (como o manual de instrução para a construção de uma casa, usado nos exemplos anteriores), vamos dizer que a "sequência de nucleotídeos" é o texto em si. Eu posso provocar uma mutação ao alterar as palavras do texto. Se o texto diz "execute a tarefa A e depois a tarefa B" e eu troco por "executa a tarefa A e depois a tarefa C", eu alterei o sentido do texto e, consequentemente, o resultado dessa instrução. Isso seria uma mutação, uma alteração na sequência dos nucleotídeos. Entretanto, como dito, o fator epigenético não altera em nada o texto. Mas digamos que eu, sem querer, derramei tinta em cima de um parágrafo do texto, manchando-o e impedindo-me de ler o que estava por baixo da tinta. Ou então derramei cola numa determinada página, trancando-a e impedindo o acesso ás informações que ali estavam. Em ambos os casos, eu não alterei o texto original, mas acabei impedindo o acesso a essas informações ali contidas. Percebam que as instruções desse manual pode ter sido drasticamente alteradas na ausência dessas partes inacessíveis. Compreendem? O inverso também pode ocorrer. Imaginemos que eu pegue um texto onde tinta foi derramada e eu removo essa tinta. Uma nova informação acaba de se tornar acessível. Da mesma forma que se eu encontro páginas coladas e arrumo uma maneira de descolá-las, trago novas instruções e, consequentemente, uma nova expressão daqueles genes. E em todos os casos citados, seja adição de informação, ou supressão da informação, se pegarmos esse manual de instruções alterado e fizermos uma cópia dele, a cópia sairá com a informação também alterada. Daí a hereditariedade desses fatores. Percebem como o mecanismo epigenético trabalha?

Na prática, deixando de lado as analogias, como essas coisas ocorrem? Existem várias maneiras diferentes e bastante complexas. Citarei apenas duas como exemplo. A primeira é a metilação e desmetilação do DNA.
DNA metilado - observe os radicais metil aderidos às bases nitrogenadas

De uma forma bem simples (estou simplificando bastante as coisas para facilitar a compreensão), podemos dizer que esses radicais metil impedem a transcrição dos genes na região metilada. É como se houvesse uma capa cobrindo o DNA e impedindo a sua transcrição naquela região. Se removida essa "capa", o DNA pode novamente ser transcrito, a informação pode ser acessada.

A segunda forma é a modificação das histonas, a qual pode ocorrer devido a uma metilação (adição do radical metil) ou acetilação (adição do radical acetil) na região. 

Metilação e Acetilação dos octâmeros de Histonas

Em ambos os casos, a modificação introduzida ocorre através de modificações em cargas eletrostáticas que provocam repulsão ou atração entre as partes, soltando ou prendendo o fio de cromatina da histona, tornando a informação inacessível ou acessível, dependendo do caso.

Cromatina sendo desenrolada das histonas pelo fator epigenético

Agora, para encerrar, vamos deixar de lado os mecanismos biológicos e entrar nas implicações práticas disso tudo. O que são esses fatores epigenéticos que provocam essas modificações em nosso DNA ao longo da vida e podem ser passados aos nossos descendentes? Como visto neste artigo científico aqui, fatores como nutrição, comportamento, estresse, atividade física, hábitos de trabalho, fumo, consumo de álcool, são fatores que podem influenciar os mecanismos de metilação e acetilação do DNA, ou seja, o nosso "modo de vida" influencia a expressão de nossos genes e a transmissão dos mesmos. Essa é a grande sacada da epigenética! Apesar das modificações que ocorrem em seu corpo não serem diretamente transmitidas aos seus descendentes, esses fatores citados podem influenciar a expressão dos genes e sua hereditariedade. Metilação e acetilação de DNA podem ser transmitidas aos descendentes. E como metilação e acetilação podem estar condicionadas aos seu padrão de vida, a forma com a qual vivemos passa a ter uma importância muito maior do que se pensava. A imagem usada como cabeçalho dessa postagem ilustra exatamente isso: dependendo da forma com que o indivíduo vive, a sua fisiologia responderá de maneira diferente. A saúde e comportamento de um indivíduo podem sim sofrer influência do meio ambiente, inclusive influência do ambiente materno ou paterno. Impressionante, não? Nas próximas postagens dessa série, abordaremos alguns exemplos interessantes e a implicação da epigenética na vida do indivíduo e formação da sociedade. Não percam! 😉

domingo, 7 de janeiro de 2018

Existe Natureza Humana?


natureza humana faz referência ao conjunto de traços diferentes - incluindo maneiras de pensar, sentir ou agir - que os seres humanos tendem a ter, independente da influência da cultura. As questões sobre quais são essas características, o quanto elas podem ser mudadas, e o que as causa estão entre as questões mais antigas e importantes da filosofia ocidental. Tais questões têm impactos imensos em ética, política e teologia, bem como em arte e em literatura. Os múltiplos ramos das ciências humanas exercem um papel importante nesse debate. Os ramos da ciência contemporânea associados com o estudo da natureza humana incluem a antropologia, a sociologia, a sociobiologia, a psicologia, sobretudo a psicologia evolutiva, que estuda a seleção natural na evolução humana, e a psicologia comportamental. Nos últimos trinta anos, com o avanço das ciências da informação e biologia genética, o debate "natureza versus meio" se reacendeu, carregado de complexidades, com grandes impactos na política e filosofia do começo do século XXI. (Wikipédia)

Hoje eu pretendo deixar apenas uma reflexão a respeito do tema. Tenho percebido em inúmeras discussões com as quais topo por aí nas redes sociais, que a razão de muitas das vertentes ideológicas se deve à concepção que cada um tem de "Natureza Humana". Há aqueles que julgam o homem como "maligno, corrupto e falho por natureza". Pessoas que acreditam nisso, tendem a ser mais pessimistas com relação à humanidade. São aquelas que acham que tudo que vier da humanidade tende a dar errado. São aquelas que acreditam que o controle aversivo e a hierarquização da humanidade se fazem necessários. Há aqueles que acreditam que o ser humano é "bom e puro por natureza". São aqueles que tendem a acreditar que o meio é o principal corruptor do ser humano e que, alterando-se esse meio, altera-se a humanidade. Existem vertentes dentro dessas que citei, mas acredito que essas duas são as principais. (Obs: Não sou especialista em nenhuma das áreas citadas e, portanto, esse artigo aqui é mais voltado para uma visão pessoal e parcial do assunto. É possível que eu cometa alguns equívocos aqui. E se você, leitor, perceber algum deles, por favor... fique à vontade para criticar e corrigir-me, citando, obviamente, a fonte do estudo em questão.)

A Etologia (ciência do comportamento animal) já comprovou em diversos estudos que existem comportamentos inatos (de nascença) e comportamentos adquiridos. Pegando um exemplo rápido para ilustrar, o uivo de um lobo é algo inato, determinado geneticamente. Filhotes de lobos foram coletados do ambiente e separados do convívio com qualquer outro membro de sua espécie. Estes filhotes, ao atingirem determinado grau de maturidade, sentem o ímpeto de uivar sob a luz do luar. O fato de terem sido criados na ausência de qualquer membro de sua espécie exclui automaticamente a chance deles terem aprendido a uivar socialmente. O uivo é algo inerente à espécie. Mamíferos, de forma geral, possuem reflexo de sucção de nascença. Se você pegar um filhote recém-nascido de qualquer mamífero e introduzir o dedo indicador na sua boquinha, ele tentará mamar como se fosse a teta de sua mãe. Novamente, neste caso, ninguém ensinou o filhote a mamar. Ele simplesmente sabe! É algo inato, determinado geneticamente. Podemos dizer que todos esses casos fazem parte da natureza daquela espécie em questão, concordam?

Agora vamos ao ponto polêmico e sem resposta: "E quanto ao ser humano? Existe de fato uma natureza humana?" Quando faço essa pergunta, obviamente, me refiro a algo muito além de "reflexo de sucção" (que nós certamente possuímos). Estou me referindo às qualidades que nós damos a nós mesmos. O que nos faz humanos? Essas características são inatas ou construídas socialmente? É aí que entra o problema, pois a ciência ainda não conseguiu responder a essa pergunta. No exemplo dos lobos, conseguimos isolá-los os totalmente do convívio com membros de sua espécie, mas com seres humanos não é possível realizar esse tipo de experimento. Até mesmo porque o ser humano é um animal social e o ambiente social é uma variável importante nessa análise. Para realizar um experimento similar e descobrir a existência dessa natureza humana (caso exista), seria necessário, ao meu ver, a criação de diferentes tipos de sociedades onde esses seres humanos cresceriam e se desenvolveriam. Uma sociedade pacifista e outra puramente violenta, uma sociedade onde não há hierarquias e outra com hierarquização máxima, uma onde há economia monetária e outra não, e por aí vai. Acredito que somente através desse tipo de análise poderíamos ter uma resposta direta a essa pergunta, mas sabemos que esse tipo de experimento é inviável (além de antiético). Resta-nos apenas experimentos sociais de menor escala, além de análises comportamentais e biológicas. Como disse, não há consenso e estamos longe de comprovar alguma coisa. Por esse motivo há espaço para as duas interpretações citadas no início do texto, e a partir dessas interpretações, surgem as ideologias e visões de mundo.

Pessoalmente (sim, o artigo a partir de agora é puramente opinativo) acredito numa visão mais sociobiológica da humanidade. A sociobiologia, em linhas gerais, é uma disciplina relativamente nova, que trabalha conceitos da sociologia com biologia (minha área de especialidade). Dentro dessa concepção, somos parcialmente fruto de uma programação genética, a qual pode ser modificada pelas variáveis ambientais (especialmente através de mecanismos epigenéticos, sobre os quais falarei em algum momento). Nesse sentido, não haveria uma natureza humana no sentido estrito da coisa. A nossa natureza seria moldada a partir de nossas experiências e do meio social em que vivemos. Eu sou brasileiro, biólogo, agnóstico, pacifista. Mas se eu tivesse nascido na Síria, provavelmente seria muçulmano e, quem sabe, um guerrilheiro. Se tivesse nascido no Texas, eu poderia ser um empresário, protestante e, quem sabe, armamentista. Estou citando alguns exemplos aleatórios para ilustrar meu ponto de vista. Muito de nossas características pessoais, sejam relativas a gostos pessoais, vertentes ideológicas, caráter, índole, etc., são determinados pelo ambiente onde crescemos. É claro que existem exceções. Podemos ter uma criança norueguesa que sempre teve de tudo na vida e se tornou um traficante assassino, ou uma criança criada numa comunidade extremamente violenta do RJ que se tornou uma "pessoa de bem", honesta e pacifista. Existem casos em que o meio não consegue mudar a pessoa e é nesses casos que se baseiam as vertentes que acreditam no pleno livre arbítrio humano. O ser humano se torna aquilo que ele quer e o meio não tem nada a ver com isso. Entretanto esses casos costumam ser minoritários. E os estudos, até onde conheço, mostram a grande força do componente ambiental na construção social desses indivíduos. Além disso, é possível que existam variáveis nesses casos minoritários que tenha levado à discrepância. A criança norueguesa poderia ter um desvio neurológico, por exemplo. A criança do RJ poderia ter uma mãe ou avó extremamente importante na sua educação. Enfim... há uma verdadeira infinidade de variáveis que deveriam ser analisadas para que chegássemos a uma resposta satisfatória. 

Finalizando, deixo um trecho de um documentário polêmico que ilustra exatamente o que acredito em termos de natureza humana, embasado nos tais estudos de sociobiologia e epigenética que citei. Aqui está o link para quem tiver a curiosidade de saber mais: