"Somos uma maneira do Cosmos conhecer a si mesmo" (Carl Sagan)

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sábado, 15 de outubro de 2016

Educação - Parte 1 (O Aluno de Hoje)


Nesse dia 15 de Outubro, dia do Mestre, gostaria de fazer uma postagem que já venho pensando há algum tempo e acho que o momento é propício. Trabalho com educação há 14 anos e acho que já tenho pelo menos alguma bagagem pra tirar uma grande lição disso tudo. Antes de começarmos a lecionar, nós professores acreditamos que vastos conhecimento de nossos conteúdos programáticos nos tornarão excelentes profissionais. Entretanto, ao chegarmos a uma sala de aula, a realidade se mostra completamente diferente do esperado. Problemas disciplinares acabam consumindo 90% de nosso tempo e energia. Isso sem citar alunos que apresentam dificuldades e transtornos os mais diversos possíveis. Aquela sala de aula idealizada, na qual os alunos estão todo enfileirados e em silêncio para absorver tudo aquilo que você falar ali na frente, não existe. Talvez nunca tenha existido (deixo essa polêmica pra daqui a pouco). Diante das dificuldades, a grande maioria dos colegas acaba desistindo. Alguns abandonam e mudam de profissão, outros se acomodam onde estão, passando o resto da vida infelizes e reclamando dos seus problemas todo santo dia, sem fazer algo para de fato mudar sua realidade. Poucos conseguem vencer os obstáculos e fazer um trabalho que seja significativo para seus educandos. Eu sempre procurei fazer parte desse último grupo. Não há um dia sequer ao longo desses 14 anos de trabalho que eu não pense em como fazer diferente, em como conquistar a atenção do meu aluno, como vencer os desafios da sala de aula... Isso não me faz melhor do que ninguém, e meu objetivo com esse texto não é exaltar minhas qualidades, longe disso. Mas é que preciso contextualizar essa questão para o entendimento do que vem a seguir...

Ao longo desses anos, buscando respostas, encontrei alguns indícios do que pode estar ocorrendo e como podemos solucionar tais problemas. Sei que pode parecer pretensão da minha parte dizer isso, visto que inúmeros estudiosos no mundo todo tentam resolver esse problema e ninguém encontrou uma fórmula. Mas ao mesmo tempo acredito que todo mundo tem algo a acrescentar nessa nossa busca por uma resposta. E é nesse sentido que estou escrevendo este texto, na esperança de que algumas dessas ideias sirvam a outros educadores nas mesmas condições. Por último, gostaria de deixar claro que estou me embasando em estudos que li, palestras de especialistas que assisti, experimentos realizados em sala de aula, observações realizadas em sala de aula, etc. Tentei ao longo desses anos sistematizar as ideias com algum embasamento, para não cair num mero "achismo". Inclusive, é por esse motivo que estou postando nesse blog... porque esse é o propósito: entender o pensamento científico e aplicá-lo em tudo no nosso cotidiano, evitando cair em falácias, crendices e coisas do tipo. Mas ao mesmo tempo sem esquecer a tal da "espiritualidade" (citada nesta postagem), sem a qual acredito não adiantar avançar mais tecnologicamente. A ideia principal desse texto é tentar passar um pouco disso tudo, dessa humanidade, dessa esperança no ser humano, na educação, na transformação da sociedade. É possível! É preciso acreditar!

Enfim... depois dessa introdução gigantesca (como disse, era preciso contextualizar tudo), vamos à análise da questão. Em primeiro lugar, vamos desmistificar a questão do "o aluno de hoje é pior do que o de ontem". Existe um erro que cometemos sempre no cotidiano que é associar nossa percepção de uma dada situação à realidade como um todo. Vou criar um exemplo simples. Imaginemos que você mora em uma cidade que chovia de maneira mediana ao longo dos anos e nos últimos anos tem chovido demais. Supondo que as pessoas comecem a argumentar: "Tem chovido muito no Brasil atualmente..." A pessoa está extrapolando a observação local dela para uma nação. A afirmativa pode ser verdadeira ou não. Ela depende de dados no âmbito nacional para fazer essa afirmação com segurança. Acho que esse exemplo é fácil de entender e todo mundo há de concordar. Imaginemos uma outra situação, agora na área da saúde. Alguém diz, por exemplo, "Antigamente as pessoas não tinham tanto câncer assim..." Pode ser que seja apenas uma sensação gerada pelo aumento da informação. Antigamente os casos não eram notificados. Hoje, com a melhora na medicina diagnóstica e a divulgação de informações, temos a sensação de que houve um aumento de casos. A afirmativa, novamente, pode ser verdadeira ou falsa, dependemos de dados para fazer uma afirmação precisa. Por esse motivo, quando dizemos "o aluno de hoje é pior do que o de ontem", em qual dado estamos nos embasando? Eu diria que na maioria das vezes estamos fazendo essa afirmação embasada em nossa observação diária, nossa percepção. É claro que essa percepção é compartilhada por TODOS os educadores no âmbito nacional (e muitas vezes internacional). Mas não quer dizer que a afirmação de que "o aluno de hoje é pior do que o de ontem" seja verdadeira, pode ser apenas uma má interpretação pela falta de dados...

Esse tipo de pensamento me veio à cabeça há vários anos atrás, num congresso de educadores realizado pela Rede Pitágoras de Ensino. Uma ex-secretária de educação de São Paulo (não recordo o nome) apresentou inúmeros dados estatísticos mostrando as mudanças da rede educacional de SP ao longo das décadas. A palestra foi chata e entediante para muitos. A grande maioria dos educadores, nesse momento, se comportou exatamente como os alunos que criticam. A palestra estava "chata", diziam. E a palestrante deveria ser mais "divertida" ou apresentar os dados de forma mais "atrativa", argumentavam. Concordo! É sempre possível fazer isso. Mas isso não tornou a palestra menos importante para mim. Como um "bom aluno" (sempre fui o CDF da turma... rsrs) me forcei a prestar a atenção e a entender os dados que ela estava apresentando. Bom... posso hoje não me lembrar com clareza desses dados, mas a mensagem principal que ela quis passar ficou bem clara em minha mente. Nas décadas anteriores (se não me engano, da década de 70 para trás), a quantidade de alunos em sala de aula era menor. Uma grande parcela da população não tinha acesso à educação. Filhos de trabalhadores do campo e dos grandes centros urbanos, os mais pobres, os menos favorecidos, etc. Com a construção de novas escolas e as políticas públicas que permitiram o acesso dessas pessoas, hoje, poucas crianças não estão na escola. Então o que mudou? O acesso desse público!

Antigamente, tínhamos uma educação mais elitizada. Só chegavam à escola aqueles que tinham boas condições de estudar. A grande massa que temos hoje estava fora das escolas. E quando estes chegavam, muitos desistiam e abandonavam na metade do curso. Inclusive, conversando com os mais velhos, não é difícil encontrar pessoas que abandonaram os estudos no final do Fundamental I, ou algumas vezes do Fundamental II. Muitos nem completaram um ciclo de estudo desses. Então eu acredito que o que ocorria era um processo de "seleção natural". Estipulava-se uma meta a qual todos os alunos, sem exceção, deveriam alcançar. Aplicava-se medidas disciplinares (muitas discutíveis) e avaliações rígidas (também discutíveis). Aqueles que sobreviviam ao processo, que se enquadravam no sistema de normas vigente, e que conseguiam atingir boas notas dentro desse padrão de avaliação, eram os selecionados para ocupar os melhores empregos na sociedade. Quem não resistia a esse processo, era eliminado no meio do caminho e ocupava posições inferiores. Então, nesse sentido, a sensação que se tinha, era que o aluno de ontem era mais educado e mais aplicado... quando na realidade estávamos lidando apenas com esse aluno. Os demais não estavam na escola ou fracassavam ao longo do caminho. Não era de fato um processo de educação, pois não havia a transformação do cidadão. Apenas aplicávamos métodos para selecionar os melhores dentro da população. Será que faz sentido isso que estou dizendo? A hipótese procede?

A dificuldade que temos hoje, portanto, é decorrente da inclusão de todos esses alunos que antigamente ficavam de fora. Com a universalização do ensino, o aluno que tem dificuldade, o aluno que não consegue parar quieto no lugar, o aluno que não traz boa educação de casa, o aluno que tem problemas em casa, o aluno que tem problemas psicológicos, o aluno que praticamente não tinha condição de estar ali... ali está! E o método de ensinar, disciplinar, avaliar... não mudou. É engraçado qua quando comparamos a vários outros ramos da sociedade, percebemos que todos eles evoluíram e se adaptaram a esse novo tipo de população. O cinema, a TV, a comunicação, as relações sociais, a tecnologia, a forma de interagir e de encarar o mundo... tudo mudou! O mercado acompanhou a mudança e, por isso, continua vendendo. A educação parou ali. E não estou falando de uma realidade apenas brasileira não. Se formos buscar com educadores do mundo todo, como vemos muitas vezes em Congressos Internacionais de Educação, o problema é sistêmico, é global. Portanto, é preciso repensar a educação como um todo. Alguns países como Coreia do Sul e Finlândia  largaram na frente nessa busca. É claro que são culturas diferentes, situações sócio-político-econômicas diferentes. Trata-se apenas de exemplos de países que já estão no caminho, na busca por uma educação diferente para esse novo milênio. Aqui no Brasil temos muitos educadores que também estão diariamente nessa busca. O que é preciso vencer, ao meu ver, é o preconceito.

Esse preconceito se manifesta de diversas formas. Manifesta-se através do professor que acha que seu aluno é burro ou incapaz de aprender. Manifesta-se através de sistemas educacionais, técnicas e métodos, que tratam alunos diferentes como se fossem iguais. Manifesta-se através de governos que acreditam que educação de qualidade é exclusividade das elites. Manifesta-se principalmente com relação aos pesquisadores que dedicaram suas vidas a estudar os processos de ensino-aprendizagem. Não é incomum você encontrar profissionais da área de educação que abominam qualquer tipo de estudo feito na sua própria área. Segundo esses profissionais, apenas quem está dentro da sala de aula tem propriedade para falar de educação. Lembram do exemplo que dei da percepção parcial extrapolada para o todo? Pois é... acontece direto! Dependemos desses estudos, desses dados e, principalmente das discussões geradas para podermos refletir criticamente acerca dos problemas encontrados e buscarmos juntos as soluções. Ninguém tem a solução pronta! Mas todos juntos podemos chegar a algum lugar e, quem sabe, encontrá-la. Vencer todos esses preconceitos é necessário, é o primeiro passo. Em seguida, é buscarmos alternativas. É não desistir jamais da luta, do tentar fazer diferente. Eu sempre digo que, o dia em que eu não acreditar mais no que estou fazendo, eu peço demissão e vou buscar outro emprego. Não consigo ficar no mesmo lugar, fazendo algo que não acredito, sendo infeliz, apenas esperando pela aposentadoria. Isso não é vida. E é justamente por isso que vemos tantos colegas em situações deploráveis de saúde. Estão infligindo danos a si próprios e, consequentemente, aos seus alunos (falarei sobre isso em outra postagem).

Finalizando... o que era para ser uma única postagem para o dia dos professores ficou tão grande que acabei de resolver que a tornarei numa "série de postagens" relativas à educação. Esse primeiro tópico diz respeito à mudança no perfil do aluno. E a conclusão a que chego é: não mudaram. Alunos sempre foram alunos e apresentam esse perfil em qualquer local do mundo. A diferença é que, hoje, temos que lidar com todos os perfis de aluno e não apenas selecionar os bons. Sendo assim, considerando os alunos como a "matéria-prima" do professor, podemos dizer que hoje não podemos trabalhar só com a melhor matéria-prima. É necessário aprendermos a pegar a matéria-prima que temos no mercado (o aluno que já chega com "n" dificuldades e problemas) e fazer com ela o melhor "produto" possível para a sociedade. É essa a minha visão e espero que compartilhem dela. Quanto mais pessoas acreditarem que é possível, mais poder de transformação social teremos, no Brasil e no Mundo!

"Se você acha que não somos capazes de mudar o mundo, isso significa apenas que você não é um dos que farão isso" (Jacque Fresco)

Um comentário:

Unknown disse...

Muito interessante. Concordo da sua opinião, o magistério é uma arte que precisa se reinventar, tanto no geral quanto no dia a dia.
Pena que temos a mania de focar nos problemas e não nas possibilidades. Há um vasto campo para explorar e trabalhar como há 20 ou 10 anos atrás é a maneira mais rápida de não dar certo.
É trabalhoso, mas acredito que valha a pena.