Uma modificação fenotípica, ou seja, uma modificação que ocorreu em seu corpo ao longo de sua vida pode ser passada geneticamente aos seus descendentes? Estaria Darwin errado e Lamarck certo? Conheça a epigenética! Epigenética é o estudo da alteração na função dos genes que não envolvem alterações na sequência dos nucleotídeos. Tratam-se de alterações nos cromossomos que afetam a atividade e a expressão dos genes. E essas alterações são hereditárias! Como assim? Seria um "Neolamarckismo" surgindo? Vamos entender...
Em primeiro lugar, é importante que você esteja familiarizado com os conceitos de genética molecular. Essa postagem, no caso, é a terceira de uma série. Se você perdeu as duas anteriores, ou se você quer relembrar para entender melhor a questão, acesse nos links a seguir a Parte 1 e a Parte 2. Na primeira parte, vimos que uma alteração na sequência dos nucleotídeos do DNA, as chamadas mutações, podem afetar a transcrição das proteínas e, consequentemente, a expressão do fenótipo do indivíduo (características observáveis do indivíduo). Entretanto, no caso do fator epigenético, como dito na introdução, não afeta essa sequência, não gera uma mutação. Vimos também que existem fatores que bloqueiam a transcrição de determinados trechos do DNA, alterando a expressão gênica. Entretanto, no caso do fator epigenético, tais alterações são hereditárias, como dito na introdução. E onde ocorrem essas alterações então? Como visto na Parte 2, as proteínas histonas são responsáveis por "trancar" e "destrancar" certas regiões do DNA, tornando as informações acessíveis ou não. Boa parte das alterações epigenéticas acontecem nesse nível.
Voltando às nossas analogias, imaginando que o DNA de um indivíduo seja seu manual de instruções (como o manual de instrução para a construção de uma casa, usado nos exemplos anteriores), vamos dizer que a "sequência de nucleotídeos" é o texto em si. Eu posso provocar uma mutação ao alterar as palavras do texto. Se o texto diz "execute a tarefa A e depois a tarefa B" e eu troco por "executa a tarefa A e depois a tarefa C", eu alterei o sentido do texto e, consequentemente, o resultado dessa instrução. Isso seria uma mutação, uma alteração na sequência dos nucleotídeos. Entretanto, como dito, o fator epigenético não altera em nada o texto. Mas digamos que eu, sem querer, derramei tinta em cima de um parágrafo do texto, manchando-o e impedindo-me de ler o que estava por baixo da tinta. Ou então derramei cola numa determinada página, trancando-a e impedindo o acesso ás informações que ali estavam. Em ambos os casos, eu não alterei o texto original, mas acabei impedindo o acesso a essas informações ali contidas. Percebam que as instruções desse manual pode ter sido drasticamente alteradas na ausência dessas partes inacessíveis. Compreendem? O inverso também pode ocorrer. Imaginemos que eu pegue um texto onde tinta foi derramada e eu removo essa tinta. Uma nova informação acaba de se tornar acessível. Da mesma forma que se eu encontro páginas coladas e arrumo uma maneira de descolá-las, trago novas instruções e, consequentemente, uma nova expressão daqueles genes. E em todos os casos citados, seja adição de informação, ou supressão da informação, se pegarmos esse manual de instruções alterado e fizermos uma cópia dele, a cópia sairá com a informação também alterada. Daí a hereditariedade desses fatores. Percebem como o mecanismo epigenético trabalha?
Na prática, deixando de lado as analogias, como essas coisas ocorrem? Existem várias maneiras diferentes e bastante complexas. Citarei apenas duas como exemplo. A primeira é a metilação e desmetilação do DNA.
DNA metilado - observe os radicais metil aderidos às bases nitrogenadas
De uma forma bem simples (estou simplificando bastante as coisas para facilitar a compreensão), podemos dizer que esses radicais metil impedem a transcrição dos genes na região metilada. É como se houvesse uma capa cobrindo o DNA e impedindo a sua transcrição naquela região. Se removida essa "capa", o DNA pode novamente ser transcrito, a informação pode ser acessada.
A segunda forma é a modificação das histonas, a qual pode ocorrer devido a uma metilação (adição do radical metil) ou acetilação (adição do radical acetil) na região.
Metilação e Acetilação dos octâmeros de Histonas
Em ambos os casos, a modificação introduzida ocorre através de modificações em cargas eletrostáticas que provocam repulsão ou atração entre as partes, soltando ou prendendo o fio de cromatina da histona, tornando a informação inacessível ou acessível, dependendo do caso.
Cromatina sendo desenrolada das histonas pelo fator epigenético
Agora, para encerrar, vamos deixar de lado os mecanismos biológicos e entrar nas implicações práticas disso tudo. O que são esses fatores epigenéticos que provocam essas modificações em nosso DNA ao longo da vida e podem ser passados aos nossos descendentes? Como visto neste artigo científico aqui, fatores como nutrição, comportamento, estresse, atividade física, hábitos de trabalho, fumo, consumo de álcool, são fatores que podem influenciar os mecanismos de metilação e acetilação do DNA, ou seja, o nosso "modo de vida" influencia a expressão de nossos genes e a transmissão dos mesmos. Essa é a grande sacada da epigenética! Apesar das modificações que ocorrem em seu corpo não serem diretamente transmitidas aos seus descendentes, esses fatores citados podem influenciar a expressão dos genes e sua hereditariedade. Metilação e acetilação de DNA podem ser transmitidas aos descendentes. E como metilação e acetilação podem estar condicionadas aos seu padrão de vida, a forma com a qual vivemos passa a ter uma importância muito maior do que se pensava. A imagem usada como cabeçalho dessa postagem ilustra exatamente isso: dependendo da forma com que o indivíduo vive, a sua fisiologia responderá de maneira diferente. A saúde e comportamento de um indivíduo podem sim sofrer influência do meio ambiente, inclusive influência do ambiente materno ou paterno. Impressionante, não? Nas próximas postagens dessa série, abordaremos alguns exemplos interessantes e a implicação da epigenética na vida do indivíduo e formação da sociedade. Não percam! 😉